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Eis aqui o conto publicado na TUDA:

O GUITARRISTA E O DICIONÁRIO

Hilário Hidelbrando entrou naquele bar decadente, escolheu uma mesa, pediu uma cerveja e uma porção de filé-aperitivo acebolado. Naquela época (início da década de noventa) não havia aquela mania malcheirosa da picanha no recháud… Nunca havia ido lá… ficou reparando na freguesia: na mesa da direita um bando de jovens sem educação… na mesa da esquerda uma morena exuberante lendo um livro silenciosamente… ficou achando que aquela molecada iria aborrecê-lo, afinal ele havia ido àquele lugar pois ouviu dizer que o lendário guitarrista Lanny Gordin iria se apresentar … Hilário Hidelbrando sempre quis vê-lo tocar, porém esse músico que fora fundamental na fase pós-tropicália, havia se afastado do cenário musical (não se esqueçam que este miniconto se passa no período retromencionado). O nosso protagonista era obsecado por três coisas: pela guitarra de Lanny Gordin, pela língua falada pelos bandeirantes, a hoje extinta Língua Geral Paulista, também conhecida como Tupi Austral, uma derivação do tupiniquim falado pelos índios de São Vicente e da região do alto do Tietê… Para Hilário Hidelbrando, assistir um show do Lanny Gordin seria como folhear o único dicionário da Língua Geral Paulista escrito até hoje: o raríssimo “Glossaria Linguaram Brasiliensium” escrito por autor desconhecido no século XVIII e publicado por um alemão chamado Von Martius em 1863… mas isto sim, era praticamente impossível pois segundo consta o único exemplar se encontrava em uma biblioteca holandesa. A terceira obsessão dele era encontrar um par perfeito… “Uma mulher como a da mesa em frente” pensou… Um pouco antes dele pedir a segunda cerveja o show começou… Era o Lanny mesmo, em carne e osso… como o repertório do grupo que se apresentava na casa era samba, o ilustre guitarrista não solava , mas fazia o acompanhamento (guitarra base) com maestria: uma sucessão de blocos de acordes que demonstravam um formidável domínio harmônico naquele estilo em que outros guitarristas também brilharam (Barney Kessel, Larry Coryell, Hélio Delmiro, etc). No momento do intervalo dos músicos um dos integrantes da mesa barulhenta pediu a guitarra emprestada e fez um daqueles solos de rock bem previsíveis cheios de clichês e riffs manjados… a namorada achava o máximo os amigos aplaudiam entusiasmados… Quando o grupo voltou para a segunda parte do espetáculo, o guitarrista veio até a mesona e falou: – Vocês gostam de rock??? Então aumentou o volume da guitarra e começou fazer um solo cheio de distorsões em que a linha melódica seguia nos caminhos mais variados, naquele estilo em que somente um certo guitarrista brilhou…

O pessoal da mesa grande ficou mudo… então no meio daquele solo de guitarra maluco tocado a todo volume, ele olhou para ela e reparou que a morena exuberante o observava…

Quando a situação se normalizou ela se levantou foi até a mesa dele falou: -“Sei que você está incomodado com a mesa vizinha, mas também ninguém merece ficar ao lado deste povo barulhento, se você quiser pode sentar na minha mesa, meu nome é Núbia Nanira…”

– “Belo nome … o meu é Hilário Hidelbrando.”

Ele se levantou e foi sentar com ela… “Reparei que você está gostando desse livro…” disse ele – “Que livro é???” – “É um dicionário que veu avô me deu… é sobre a língua falada pelos paulistas no início da colonização… Você sabia que os bandeirantes não falavam português???”

“Sim ,eu sei… existiam duas línguas gerais: a Língua Geral Paulista, falada pelo pessoal de São Paulo, Minas e Goiás e a Língua Geral Amazônica, ou nheengatú, falada pelos habitantes do Maranhão e Pará… o português era falado só no trecho entre o Rio de Janeiro e Piauí…deve ser por isto que São Paulo tem muito mais topônimos indígenas do que o Rio…pouca gente sabe que, por exemplo, que por mais de um século, (mais precisamente entre meados do século XVII e o final do século XVIII), os paulistas e cariocas não falavam literalmente a mesma língua… mas mudando de assunto, deixe-me ver o livro, pois que eu saiba só existe um dicionário da Língua Geral Paulista, que se chama “Glossaria Linguaram Brasiliensium” e há somente um único exemplar que está guardado em um museu da europa…”

Desculpe, mas você está enganado …meu avô, quando lecionava na Faculdade de Letras de Assis, vasculhava as bibliotecas públicas do interior de São Paulo e descobriu um segundo exemplar na Biblioteca Municipal de Trabijú… Neste instante ela fechou o livro (que permanecia aberto sobre a mesa) e ele pode ler na capa: “Glossaria Linguaram Brasiliensium”!!!

Eu não acredito!!! Eu tenho duas obsessões: ouvir um show daquele guitarrista ali da frente e ler este livro magnífico…

Na verdade não haviam duas, mas três obsessões, e a terceira estava diante dele, Ele então resolveu pedir outra cerveja, coincidentemente a terceira… A conversa engrenou…

Hilário Hidelbrando querendo impressionar Núbia Nanira, disse o nome do bairro dele traduzido do tupi para o português: -“Eu moro no bairro da árvore velha” – “Há! No Ibirapuera…“ respondeu ela prontamente…

O nosso protagonista ainda impressionado com o fato da nossa protagonista saber tupi, emendou: – “E você onde mora???”

– “No bairro dos gafanhotos verdes”

– “Não conheço muito o Tucuruvi, é legal???”

– “Sim… se quiser conhecer eu te mostro”… disse ela entregando em seguida o telefone escrito (com a caneta emprestada pelo garçon) em um guardanapo de papel.

Hoje Hilário Hidelbrando e Núbia Nanira estão felizes… se casaram, tiveram um filho e semana que vem vão batizar a criança… só não sabem ainda em que língua será escrito o convite… afinal “batizado de criança” é “moiasúk pitánga” em tupiniquim , “seróka mitangá” na língua geral paulista ou “serok taína” em nheengatú….

Observação: Toda esta estória é pura ficção, a inserção de pessoas reais mescladas a personagens fictícios é mero recurso literário, por sinal já utilizado por grandes escritores.

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