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EM UM QUENTE E CÁUSTICO DEZEMBRO

Dezembro, fim-de-ano, a sensação de relaxamento diante do ano que estava acabando – é preciso fechar para balanço, pensar no ano que se foi – filosofava Josias Germano, em meio a um engarrafamento matinal… fora um ano de realizações, a compra do apartamento, a conclusão do mestrado, a perspectiva de uma futura ascenção profissional, o título da Copa Sul-Americana conquistado heroicamente pelo tricolor paulista… mas nem tudo eram alegrias… Pedro Venâncio seu grande amigo se fora… assim como se foram também grandes nomes das artes: Oscar Niemayer , Dave Brubeck e Décio Pignatari… ele sabia que o poeta nunca fizera algo como a maquise do Ibirapuera ou o álbum “Take Five” , mas durante a faculdade fora aluno de Pignatari, ou seja conhecera-o pessoalmente… Décio não se tornara seu amigo… mas notava que o mestre tinha mais satisfação em responder suas indagações aparentemente vindas do nada, do que aquelas perguntas previamente elaboradas, vindas de determinados alunos com intenção em demonstrar conhecimento refinado…

Como o trânsito estava definitivamente caótico, o nosso protagonista resolveu ligar o rádio e descobriu que um acidente fatal com motocicleta literalmente parara a capital paulista – o trânsito de São Paulo é igual a saúde de alguém muito idoso- refletiu – qualquer resfriadinho vira pneumonia… qualquer caminhão quebrado, acidente com moto, atropelamento gera um a lentidão monstruosa afetando a milhares de cidadões…

E então a radio toca o seu refrâo:

“Vão bora! Vão Bora!
Tá na hora! Na hora!”

Como ir embora nesta lentidão… é um absurdo – pensou Josias Germano – chega desta rádio reacionária que só exibe essa musiquinha de manhã, na hora de entrar no trabalho, nunca toca este refrão na parte da tarde… como que só tivesse hora para entrar no trabalho, nunca para sair…

Josias Germano olhou o semáforo que devido ao engarrafamento não conseguia transpor, lembrou-se então que a palavra semáforo é derivada do termo ”semeion” que em grego significa signo… a mesma raiz da palavra semiótica… recordou-se do título de seu trabalho de conclusão de curso na pós-graduação “Semiótica na Sinalização de Trânsito – paradigmas e sintagmas da sinalização viária” … notou também que o “semi” da semiótica estava degenarado: semijóias e carros seminovos eram um indício da degeneração dos signos da comunicação moderna…

Lembrou-se então que no porta-luva do automóvel havia um exemplar de “O que é Comunicação Poética” de Décio Pignatari, livro que usara como subsídio a seu trabalho de graduação… Como o trânsito não andava e o calor começara a se tornar ensandecedor, resolveu ler trechos da obra do poeta de Jundiaí:

“Para o poeta, mergulhar na vida e mergulhar na linguagem é (quase) a mesma coisa. Ele vive o conflito signo vs coisa. Sabe (isto é, sente o sabor) que a palavra ‘amor’ não é o amor – e não se conforma…

De repente então o estrondo, o motoqueiro indo embora apressado e o espelho retrovisor direito virado….

Josias Germano xingou a “raça dos motoqueiros”, como costuma a fazer com a “raça dos taxistas” – O mundo está a cada dia pior, estamos todos perdendo a noção das coisas – recordou-se então daquele poema de Torquato Neto que dizia:

“É preciso que haja algum respeito
ao menos um esboço:
ou a dignidade humana se firmará a machadadas”

Pensou então em comprar um machado… lembrou-se que no início do próximo ano iria a Assis, no interior de São Paulo, visitar seus sogros, e que nesta cidade havia uma loja chamada “Casa das Miudezas”, que vende tudo: anzóis, artigos de papelaria, veneno de barata, botinas, cedês virgens, armarinhos e até servia cerveja em um pequeno balção – com certeza deve ter machado – refletiu o nosso amigo…

Depois ficou com pena do motoqueiro que morrera na Marginal e estava causando todo este transtorno… lembrou-se então da canção de Chico Buarque que dizia

“morreu na contra-mão atrapalhando o tráfego”

recordou então o arranjo que Rogério Duprat havia composto para “Construção” então, como o trânsito não andava mesmo, resolveu ler mais Pignatari:

O poema é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem, fazendo poema. Está sempre criando e re-criando a linguagem. Vale dizer: está sempre criando o mundo. Para ele, a linguagem é um ser vivo.”

Voltou então a lembrar-se de Torquato Neto e de sua amizade com Pignatari, o poeta de Teresina homenageara o semiótico de Jundiaí no título da canção que compusera com Gilberto Gil e também da coluna que publicou no jornal Última Hora: “Geléia Geral”, retirado da frase de Pignatari:

“Alguém, na geléia geral brasileira, tem de exercer as funções de medula e osso”

… então do nada apareceu outro motoqueiro e bateu de leve no vidro do carro de Josias Germano… o nosso protagonista se assustou, porém o motoqueiro apontou para o espelho retrovisor revirado e colocou o retrovisor de volta à posição correta… o nosso protagonista fez sinal de positivo e deu um leve toque na buzina em sinal de aprovação… o segundo motoqueiro partiu amistosamente…

Josias Germano então julgou ter presenciado uma das epifanias, manifestações divinas em pequenos atos do cotidiano, tão comentadas por James Joyce… pensou então que o mundo não estava tão boçalizado, que existiam pequenas demonstrações de que nem tudo está perdido…pensou então que quando fosse a Assis não precisaria mais comprar o machado.

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