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TRIBUTO A JOSÉ MORALEZ

Faz duas semanas que meu sogro José Moralez se foi… terminado este desenho me resta escrever esta singela homenagem…

Poderia descrever sobre seu apurado gosto musical (através dele conheci Sonora Matancera, Javier Solis, Mariachi Vargas de Tecalitlan, BBC Big Band, Trio Surdina, etc.)…

Poderia lembrar o cozinheiro de mão cheia que preparava tão bem feijoadas, pucheros, bacalhaus, peixes no fubá, etc.

Poderia recordar sobre seu vasto repertório literário e sua produção como jornalista e escritor (publicou ”De uvas e limas” em 2014 pela Editora …sim, mas… e deixou um livro inédito para ser publicado: “Guarucayanas”)

Poderia lembrar do seu amor pelas plantas, em especial pelas orquídeas que criava com tanto carinho…

Poderia dizer sobre a pessoa espirituosa que era, bom pai que educou tão bem seus filhos e netos…

Mas melhor do que tudo que eu poderia escrever, é deixar aqui um texto dele mesmo… um pedacinho do  “Guarucayanas”:

O DOUTOR E MEU AVÔ

Algum tempo depois, teria eu uns 7 ou 8 anos quando, já morando na cidade, fiquei seriamente doente. Muito mal mesmo. Ainda tenho lembrança de altas febres, com pesadelos de grandes medos, seguidos de muita sede. Não era a gripe de costume e os remédios caseiros e os xaropes e comprimidos da farmácia de pouco estavam valendo.

– Vou chamar o Doutor Tostes.

Era o meu avô que, vendo como eu estava, foi chamar o Doutor.

Chega o Doutor, examina, ausculta, mede a febre, pára, pensa, ausculta de novo, demora-se mais um pouco com seus pensamentos e encerra o exame. Não se faziam exames de laboratório. Não havia laboratório. Tudo dependia da competência do Doutor.

Conversam lá na cozinha, o Doutor, o Avô, minha Mãe e meu Pai. Falam baixinho. O Doutor é quem mais fala. Despede-se e vai embora. Meu Pai sai para comprar remédios. Ouço minha mãe chorando.

Meu avô entra no quarto e se ajoelha ao lado da minha caminha. Curva a cabeça, toma minha mão e ora. Ora baixinho, em espanhol, que era a língua que ele falava com as pessoas e com Alguém lá do Alto, um Alguém muito mais importante e poderoso. Ora por longo tempo, segurando minha mão. Levanta-se, faz o sinal da cruz, e vai de encontro a minha Mãe. Chega meu Pai com os remédios. Tomo os remédios. Isso tudo na parte da manhã.

De algum pouco me lembro, o demais me foi contado.  A febre cedeu e dormi serenamente, sem pesadelos. Despertei já no meio da tarde e, disso me lembro nitidamente, preocupado com umas tabuinhas de pinho, daquelas de caixa de maçã, que havia deixado em algum lugar lá fora, no quintal. Precisava delas para fazer alguns vagões para o trenzinho que estava construindo com a ajuda de serrote, martelo e alguns preguinhos da caixa de ferramentas de meu Pai. A locomotiva estava pronta, faltavam os vagões. Ergui-me da cama e com passos decididos embora muito inseguros, caminhei lá pra fora em busca das tabuinhas. Tinha que terminar o trem no dia seguinte.

– Donde está el niño?…  No está en la cama… No lo he visto salir…

Era minha mãe que, não tendo me encontrado no quarto, me procurava muito aflita. Foi encontrar-me com minhas tabuinhas. E ficou muito braba por eu ter saído da cama, tão doente que estava. Mas eu lhe expliquei que era porque eu tinha que guardar as tabuinhas para fazer o trem e – como as mães são estranhas ! – de repente ela começou a chorar enquanto murmurava que no tiene más fiebre… Ya esta bueno… Gracias señor Jesus…gracias. E continuava chorando, mas um choro de alívio, muito diferente daquele pranto tão dolorido que lhe ouvira de manhã. Da conversa entreouvida da cozinha, guardei uma palavra dita pelo Doutor: Tifo. 

Os remédios do Doutor fizeram sua parte. E, não menos importante, a Oração do meu Avô foi ouvida. Alguém lá do Alto a ouviu e atendeu a seus rogos. Certamente.

Em tempo: O trenzinho ficou pronto dois ou três dias depois, com a locomotiva e três vagões de carga. Ficou bonito. Fiz as rodinhas com carretéis, daqueles da linha usada por minha mãe em suas costuras.      

(José Moralez)         

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